segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Salão Azteca

Lúcia acordou cedo, olhou o namorado ao seu lado e não sentiu vontade de beijá-lo. Foi até a varanda ver se era sol ou chuva, noite ou dia. Era dia e cinzento. No quarto é sempre noite. Apartamento sombrio, luzes frigoríficas por toda a parte. Ele as comprara para economizar na conta. A geladeira não se encaixa no espaço exígüo da cozinha, a porta se abre para uma parede e há que se contorcer sobre o fogão para alcançar qualquer coisa gelada. Isso a incomoda. Lavou dois pratos de sobremesa e dois copos. São sempre os mesmos e poucos apodrecendo na pia. Mediu a quantidade de água necessária para encher a garrafa térmica de café. Havia um novo pacote esperando para ser aberto. Ele comprou especialmente para ela. Premium, dizia o rótulo. Ela gosta disso, prêmios. Pequenas demonstrações de afeto. Por um segundo seu rosto se iluminou e, com o pano de prato encardido nas mãos, secou a louça do dia anterior.
Não quis tomar banho. A expressão no espelho era desalentadora. Não vou poder procurar trabalho hoje. Isso não é cara de quem quer arranjar um emprego. Lúcia precisa de dinheiro para pagar sua parte do aluguel. Mas sabe que deve estar bem disposta e com boa aparência para conseguir um bico. Vou ao salão fazer a unha.
Não quis acordar o namorado para não ter que tomar café junto com ele. Todo dia era o mesmo ritual: para alcançar o pote de café em cima do armário era obrigada a pegar um banco, subir e se esticar toda. O pote não cabe em outro lugar da cozinha, simplesmente porque não há espaço livre naquele cubículo. Recostou a porta do quarto para ele não a ver tomando café sozinha. Para ele não ver sua cara de culpa e satisfação por não tê-lo acordado. Pegou o pão torrado, cobriu-o com uma margarina velha e o mastigou. Pensamento em nada, o gosto seco na boca.
O café premium não é tão bom, avaliou. Foi ao quarto ver as horas e deu um beijo na testa do namorado, que se virou indiferente enrolando-se no edredon puído. Lúcia dirigiu-se ao banheiro para lavar o rosto e tentar se aliviar. Não conseguiu. Pegou seu lápis de olho na bolsa e cuidadosamente fez um traçado fino sob os olhos. Penteou os cabelos revoltos. Não, ainda não estou com cara de alguém que vai ter uma oportunidade. Saiu.
No elevador, tentou reavivar a aparência passando um pouco de batom vermelho nas maçãs do rosto. Uma mulher gorda entrou com duas filhas pequenas dentro de maiôs com sainha segurando um balde de areia nas mãos. Mamãe, quando a gente volta para Pinheiral ? Só no mês que vem, quando recomeçarem as aulas. Lúcia tentou imaginar onde diabos ficaria Pinheiral. O elevador parou no térreo e as crianças insistiram: mamãe, eu não quero mais ficar aqui. Eu também não, aqui não tem nada pra fazer e além do mais, a praia do Flamengo é suja, disse a outra. Estão aqui de férias, concluiu Lúcia. Num apartamento de quarto e sala onde já mora um punhado de gente. Lúcia se transportou para dali a alguns anos e se viu mais velha, morando no mesmo cabeça-de-porco, a sala amontoada de parentes longínquos e criancinhas barulhentas, vindos de findomundópolis passar as férias de verão no Rio de Janeiro. É só não entrar na água, encerrou a mãe.
Fila do caixa automático do banco. Aposentados esperando para entrar. Pessoas normais, moradoras do Catete, ansiosas para sacar, depositar, emprestar, se endividar. Sob a fria luz bancária, um monte de velhos esperando que o banco lhes faça o favor de devolver o dinheiro descontado de um trabalho que lhes roubou a saúde. E que os faz ficar horas de pé para pegar de volta a quantia que mal vai servir para comprar os remédios e pagar o plano de saúde. Velhos são feios, pensou Lúcia. Sentiu repugnância pela feiúra generalizada daquelas pessoas. Uns fodidos. Involuntariamente olhou-se no reflexo da porta de vidro fumê do banco. Pálida. Sonolenta. Jovem envelhecida sacando quarenta reais no caixa eletrônico do Banco do Brasil. Lúcia teve um choque: Sou elas. Uma das pessoas normais. Uma das. Uma. Mais uma. Uma a mais.
Saldo devedor de oitenta reais. Poderia ser pior se tivesse feito aquela viagem. Caminhou rumo ao Salão Azteca, imaginando como seriam os rituais de beleza azteca. Será que os aztecas também arrancavam pêlos, cortavam arestas dos dedos, removiam calos e poliam os cascos para conseguir uma prestação de serviço? Estava vazio quando chegou, apenas uma chinesa falando português com sotaque carioca e fazendo a unha com a sua manicure azteca.
Lúcia nem viu Val fazendo sua unha. Num salão sem clientes, as manicures pintavam-se mutuamente as mechas e divertiam-se com as transformações que inventavam para si mesmas. Dalva, que há duas semanas era uma ruiva de cabelos encaracolados selvagens, hoje estava em vias de se tornar uma loura insinuante de cabelos curtos cuidadosamente escovados. Aplicavam cremes, escovas e chistes umas nas outras. Zuleima, tentando encaixar a touca térmica na cabeça, revelou às colegas que sonhara estar namorando outro. Joga na borboleta, sugeriu Silvana, com um sorriso maroto. Ou na cachorra, emendou Val.
Lúcia se indagava em pensamento se as manicures teriam carteira assinada. Devem ter. Silvana, manicure branca orelhuda dos olhos miúdos pretos e cabeça chata se aproximou de Lúcia e, sem rodeios, perguntou: o que houve? A senhora está tão abatida! Muito trabalho, respondeu Lúcia, séria. As duas se entreolharam. Silvana solidarizou-se e contou-lhe que trabalhara tanto em dezembro que na noite de natal quase desmaiara de cansaço. Lúcia pensou em como adoraria ficar exausta de tanto trabalhar. E agora ainda tem a minha filha, que tá com oito meses, então estou mais cansada ainda. A senhora tem filhos, Dona Lúcia? Não. Silvana mostrou a foto da filha e tascou um beijo no porta-retratos posto em frente à sua cadeira de trabalho. É casada, Dona Lúcia? Também não.
Silvana sentiu pena de Lúcia e não teve coragem de perguntar mais nada. Breve silêncio. Resolveu, então, que seria melhor contar sobre sua vida, para distrair Lúcia do fato dela não ter uma. Sabe, eu tive um namorado e depois fui noiva durante sete anos. Acabou. Aí, eu conheci esse que hoje é meu marido. Fui morar junto com ele depois de dois meses. Assim, vapt-vupt. Ele disse vamos morar juntos pra experimentar, se der certo a gente casa. E estamos juntos há cinco anos e meio. Ele já tinha três filhos de dois casamentos anteriores. O salário dele vai quase todo pra pagar pensão. Ter dois filhos hoje em dia não dá mais não. Filho é gasto. E acrescentou, num tom confessional: Por isso ele fez vasectomia. Nessa hora, suas bochechas sardentas coraram.
Lúcia, temendo pela seqüência da conversa com a boneca de porcelana do sertão, agarrou a primeira revista que viu. Chamava-se Quem. Quem o quê?, pensou. Quem, solto assim, não quer dizer nada. Se ainda tivesse um ponto de interrogação já significaria algo: que a pessoa não sabe e quer saber: quem? Mas Quem, com letra maiúscula e sem pontuação, não, isso não está certo. E seguiu lendo Quem febrilmente, como se ali fosse encontrar alguma resposta para sua inexistência.
Numa das páginas centrais, estancou seu olhar numa foto de página dupla, flagrante da relação falida de um casal de famosos. Sentados nos bancos da frente de um carro, ela, atriz-modelo fora de forma, cara amarrada e blusinha de babado; ele, inchado, a pele gordurosa brilhando com o flash. Olhar de ódio mútuo, sem suspeitas do flagrante de sua intimidade infernal. O fim do casal do ano estampado nas páginas de Quem. Para quem quiser comprar e se deliciar com a miséria alheia ou para quem acredita que a miséria é alheia. Não estivesse num salão de beleza, Lúcia teria se emocionado. Que foto!, pensou.
Sentiu então um grande alívio de não ser ela naquela foto, com aquele homem, aqueles babados infantis, aquela pele suada, o ar irrespirável daquele automóvel. Ai, que bom que existe Quem. Sentiu-se bem disposta, quase feliz. Unha feita, olhou-se no espelho, ajeitou o cabelo, batom nos lábios, uma gorjeta para a manicure. Talvez consiga uma vaga temporária hoje.