
Lúcia acordou cedo, pegou o metrô e foi para a igreja de São Jorge, no centro da cidade. A fila estava enorme e ela entrou logo após uma negra de megahair, blusa branca rendada e calça de malha vermelha que valorizava um clichê nada óbvio: uma bunda redonda e perfeita que dava gosto de olhar. Que a minha inveja não a atinja. Logo atrás, uma senhora pernambucana de olhos claros penetrantes e muitos colares e pulseiras coloridas pelo corpo. Seria cigana? Lúcia ficou em silêncio, sozinha na fila que só fazia crescer, observando os rostos daquela gente tão diferente e tão parecida em sua fé. Hoje Lúcia é de Jorge. A ele dedicará seu dia. A força dele está nela e é preciso agradecer. Sim, é preciso agradecer ao invisível, ao desconhecido, ao impalpável. É preciso ser forte para sustentar o próprio querer. Poder que pertence a ela e não a homem algum. Ah, a velha tendência feminina de atribuir a um homem o poder que só a nós pertence. Jorge sou eu. Ele está comigo, ele está em mim. E assim foi seguindo a multidão com seu chapéu de abas largas e óculos escuros, devota burguesa igual a qualquer um nas duas horas e meia de fila e fé. Uma rosa branca e uma rosa vermelha para o santo, um papel com um pedido depositado na urna da cura e libertação, dez velas, uma para cada mês porvir e uma para o pai, a mãe e o irmão. Missão cumprida. Lúcia deixa a igreja e vai sambar, porque ela só pode crer num deus que saiba sambar. Esbarra num velho amigo, sua mãe e irmãs de santo, senhoras poderosas com quem se alia. Caminham juntos rumo à rua Gomes Freire para dançar e beber, outras formas de confirmar a devoção ao santo, celebrado com missa e sobriedade, mas também com festa e desmedida. Jorge comporta extremos. Ogum, começo e fim dos trabalhos, força da lança que abre caminhos. Oxóssi, guerreiro das matas, flecha certeira que atravessa o coração das coisas. Vibração que pega pelo pulso quem está no fluxo e desfaz o medo e o mal do mundo. Um encontro que produz outros: amizades novas e antigas se cruzam com a música boa, a bebida que não acaba e a comida do santo distribuída para todos. A noite está caindo e o samba é cada vez mais animado e intenso. O batuque parece evocá-lo e Jorge é seduzido pela alegria da festa. Ele está presente, mas quer mais. O desejo de dançar como um homem é imenso, o batuque se acelera, o apelo dos tambores o enlouquece. A festa dos humanos lhe é irresistível. Num átimo, Jorge invade bruscamente o corpo de uma mulher, que se desequilibra com a força do santo. É ela, Lúcia, a mulher que traz Jorge dentro de si. É ela quem ele possui. Através de seu corpo Jorge é alegre por ser santo e humano e poder finalmente sambar. O que se faz com um querer sem tamanho?
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