sábado, 11 de abril de 2009

Sexta-feira da paixão


Toda sexta-feira da paixão é a mesma coisa. As paixões adormecidas insistem em se reacender dentro de Lúcia. E não há nada que ela possa fazer contra isso. Um dia ela leu que há pessoas que morrem de auto-combustão. Estão velhas, sentadinhas calmamente em sua poltrona preferida, o pensamento vagando. Vem a lembrança de uma paixão passada, um fragmento, uma faísca. É o suficiente. O incêndio vai se alastrando aos poucos pelo corpo. De dentro pra fora, em ondas cada vez mais intensas de calor. A pessoa morre a mil graus centígrados de puro nirvana. No dia seguinte, os vizinhos sentem um cheiro de queimado, chamam os bombeiros e descobrem as cinzas em frente à TV. Causa mortis: paixão auto-incendiária.

Lúcia finalmente está conseguindo escrever o primeiro capítulo da saga. Enquanto a escrita brota dos seus dedos, ela chora em silêncio. Está contando da vida de Jaco na fazenda de gado, a tristeza daquele lugar longe de tudo, as campinas sem fim, a amizade com as árvores, a conversa com a mãe ao pé do fogão a lenha, no escuro da casa de pau a pique, o aroma doce da madeira queimando. Lúcia chora de saudades da mãe preta de olhos puxados que nunca teve. Dona Benedita. E a água que corre dos seus olhos tem o gosto do mangue do rio Itanhém.

Lúcia não consegue mais escrever. É preciso sair, ver os amigos, dançar. A gafieira está repleta de gente, mas num determinado momento ela lembra da solidão de Jaco e de Dona Benedita naquela fazenda. E sente-se só, terrivelmente só naquele ambiente povoado de gente que nunca pisou num mangue. Que nunca viu um quero-quero.

Pegou um táxi e foi para casa. No dia seguinte, quando despertou, entendeu. A verdade transparente a assaltou com a força e a simplicidade de uma constatação. Ainda quero quero você. Não é mais possível negar, se enganar, dizer que faz tempo que passou, que está superado. Três anos e meio. Tenho que parar de inventar para mim mesma uma sanidade que não tenho. Era uma constatação simples e clara: aquele querer ainda a habita. Já esqueceu da existência dele, já amou outros, já foi feliz e triste depois. Mas aquele querer, aquele, nunca a havia deixado.

Lembrou que era dia de Cosme e Damião. Lembrou que brincara a manhã inteira com as crianças e descobrira um ninho de quero-quero. Lembrou das botas de borracha que ela usava para andar pelos espraiados do rio e que ele achou cômicas. Lembrou de tudo o que não foi dito. Lembrou do beijo inesperado mais esperado da história, da camisa vermelha suada com o calor daquela hora da manhã. Da volúpia atrás da árvore num recanto improvável do sítio. A pulsação daquele braço forte que a apertava com força. O encantamento dos olhos em brasa. E, sobretudo, o grito do quero-quero. O grito do quero-quero em pleno vôo afirmando com força sua liberdade incondicional.

Eu te quero quero sim. Eu te quero quero muito. Que mal há nisso?

Eis a descoberta de Lúcia. Não teve curandeiro, nem exorcismo que conseguisse tirar ele de dentro dela. Porque o fato é que estás presente, quer eu queira, quer não. E a sensação de vitalidade que acompanha nosso encontro estranhamente permanece.

Quando abriu os olhos, Lúcia viu que ele se transformara num quero-quero. E envolta em suas asas, ela começou a voar.

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