sexta-feira, 1 de maio de 2009

Anéis de tucum




Depois do susto, Lúcia começou a seguir as recomendações médicas, interrompeu seus cinco cigarros semanais e afastou-se temporariamente das emoções fortes, o que significa que parou de escrever a saga por alguns dias. Procurar um cardiologista não está nos seus planos, aí já seria demais, quem procura acha. Decidiu retomar sua rotina de escritora de saga, que se resume a acordar, tomar um café da manhã de rainha, caminhar no aterro, fazer sua série de yoga Pavana Muktásana ouvindo a deusa Nina Simone e sentar-se para escrever até não aguentar mais de cansaço, emoção ou falta de imaginação.

Perguntou para o tarô o que fazer com o quero-quero gritando histericamente no seu peito e o tarô mandou uma real sinistra: A Morte. É isso, tenho que matar este passarinho maldito que tá me assombrando mais do que Os Pássaros do Hitchcock. Mas como se livrar de alguém que nunca foi seu de verdade? Como se livrar de uma sensação presente que tira suas forças precisamente da ausência? Não é que nem ex-namorado que você pode queimar as cartas, doar as roupas, devolver os livros e cds. Então recordou que tinha comprado de uma índia tremembé dois anéis de tucum para presenteá-lo no dia D. O anel de tucum simboliza adesão às causas populares, luta contra a opressão social e o desejo de um mundo mais justo. Perfeito para o momento em questão. Comprou dois porque se um não servisse teria um outro maior, rá, sempre sagaz! Na época, não pensou na possibilidade de nenhum dos dois servirem, que é o que de fato aconteceu. Simplesmente porque Lúcia nunca entregou a ele aqueles anéis. E, para se libertar de vez da influenza aviária, decidiu que lançaria os anéis na Baía de Guanabara, onde eles viveriam felizes e sem dono para todo o sempre.

Lúcia tirou o carro da garagem mas parou logo em seguida. Sentiu-se vulnerável. Preciso de alguém ao meu lado para conseguir afogar o quero-quero. Bia? Quer caminhar no aterro? Ah, já foi hoje cedo, ahhh, tudo bem, nos falamos depois. Lauro? Sem condições de se levantar? Certo, fica pra próxima. Mônica? Namorado chegou agora, ahhhh, ok, claro, entendo. Pegou o carro, ligou o rádio e cantou junto com Renato Russo: Preciso de oxigênio/ preciso ter amigos/Preciso ter dinheiro, preciso de carinho/Acho que te amava, agora acho que te odeio/São tudo pequenas coisas e tudo deve passar. Estacionou na praia do Flamengo e caminhou rumo à passagem subterrânea. O peito começou a doer. Parou de andar. Doía muito, uma faca de ponta fina perfurava seu externo. Não sei se consigo atravessar a rua. O que faço? Dou meia-volta e vou para casa? Ligo pra alguém pedindo socorro? Puxa, justo agora que eu já paguei o vaga certa, aaahhh, quer saber, não vou voltar não. Vou tentar andar devagarinho pra ver se a dor passa. Se piorar, eu volto. Cantarolou em silêncio: Se entrega Corisco/Eu não me entrego não e conseguiu chegar até a pista do aterro. Andou como os velhinhos fazem, devagar, equilibrando-se sobre as próprias pernas, observando as árvores deslumbrantes e respirando fundo para dor de viver passar mais rápido. A heart that’s full up like a landfill. No surprises, mais uma vez, veio fazer-lhe companhia. Sabe o que é landfill?, perguntou o professor de inglês. Aterro, eu acho. Mais ou menos, landfill tá mais pra aterro de lixo, lembre-se que Thom York raramente é doce. O coração de Lúcia está repleto como um aterro de lixo, que coisa tão pouco glamurosa e tão verdadeira. Deve ser esse lixo que tá atrapalhando o ritmo das batidas.

Aquele caminho sempre a fortalece. Talvez não tanto pelas belezas do jardim burlemarxiano, mas porque sempre vê gente em estado muito pior do que o seu. Sim, é terrível pensar assim, mas esta é a mais pura verdade. Lúcia sente um imenso alívio de não ser, primeiro, aquela mulher de chapéu com um grande esparadrapo no rosto. Depois, este menino sobre uma cadeira de rodas elétrica. Em seguida, aquele playboy com uma enorme tatuagem de leão no braço. E, finalmente, este homem sem braço que acaba de ultrapassá-la na pista. Obrigada Senhor pela minha dor ser menos literal do que a deles. Continuou andando e divertiu-se sozinha com a área dos marombeiros que se reunem para puxar um ferro e exibir uns aos outros os corpos esculpidos pela falta do que fazer. E, como sempre, irritou-se com a área dos cachorros, seus donos abobalhados, seus cocôs e suas babas sem fim sobre a grama. É muita promiscuidade humano-animal para uma moça fina como Lúcia.

Chegou a hora. Postou-se na mureta em frente às pedras de granito com que aterraram a praia do Flamengo e tirou os anéis de tucum do bolso. O Pão de Açúcar à sua frente, o céu azul anil, o mar poluído da Baía, cenário perfeito para o crime. Será uma morte rápida e indolor. Ergueu os braços para pegar um bom impulso, respirou fundo e. Um labrador desgovernado pulou sobre ela, derrubou-a no chão e começou a lambê-la inteira. Lúcia não sabia o que fazer. O dono abobalhado do cachorro se divertia com aquela cena de promiscuidade humano-animal, até que se dignou a tirar o bicho de cima de Lúcia e pediu desculpas pelo mau jeito. Atordoada, Lúcia começou a rir sentada no chão. Com o rosto todo melado das lambidas do cão, não conseguiu mais se levar a sério a ponto de lançar aqueles anéis ao mar com a solenidade que este ato requeria. Voltou pra casa e começou a série de yoga ao som de Plain Gold Ring, que Nina Simone canta com uma dor e uma dignidade de que só as maiores deusas são capazes:

Plain gold ring on his finger he wore
It was where everyone could see
He belonged to someone, but not me
On his hand was a plain gold band

Plain gold ring has a story to tell
It was one that I knew too well
In my heart it will never be spring
Long as he wears a plain gold ring
Oh, oh

When nighttime comes a' callin' on me
I know why I will never be free
I can't stop these teardrops of mine
I'm gonna love him till the end of time

Plain gold ring has but one thing to say
I'll remember till my dying day
In my heart it will never be spring
Long as he wears a plain gold ring
Plain gold ring on his finger he wore
Plain gold ring on his finger he wore
Plain gold ring on his finger he wore

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