
Eu me lembro do dia em que recebi um sorriso obsceno do operário que pintava meu armário branco de amarelo, enquanto colocava o tênis de cano alto sentada na beira da cama.
Eu me lembro do dia em que o gato pegou um ônibus para ir à praia de Ipanema. Eu me lembro do dia em que a gata pulou do 8º andar e morreu horas depois de falência múltipla dos órgãos.
Eu me lembro do dia em que meu pai chorou mansinho porque minha avó tinha morrido. Nesse dia entendi que minha avó era mãe dele.
Eu me lembro do dia em que a praia estava cheia de águas vivas e não quis entrar na água
E mamãe brigou comigo, porque deveria ser corajosa e entrar na água sem medo de me queimar. Eu me lembro que as crianças que entraram se queimaram.
Eu me lembro em detalhes de uma reunião em que foi anunciada a extinção do órgão do governo em que minha mãe trabalhava. Estava dentro da barriga dela e de lá vi e ouvi tudo.
Eu me lembro de ir para o Ifcs no colo da minha mãe fazer inscrição de disciplina e de sentir cheiro de xixi na porta. Aquele cheiro entranhado nas paredes transcende gerações.
Eu me lembro do Gol vermelho berrante da minha tia berrante me esperando na porta da escola.
Eu me lembro que sonhei com o rosto da minha coleguinha sem olhos, nariz ou boca.
Eu me lembro que não quis comer jiló na escola e isso fez de mim uma criança-problema.
Eu me lembro que fugia da sala de aula quando tinha que fazer algo de que não gostava e, numa dessas escapadas, caí e machuquei o dedo do pé. Minha mãe foi chamada às pressas para a escola e me resgatou daquele inferno.
Eu me lembro que dava beijos de língua nos meus coleguinhas de maternal e isso piorou minha situação de criança-problema.
Eu me lembro que minha mãe me mudou de escola e deve ter sido porque eu era uma criança-problema. Ela dizia que a escola era “elitista”. Fui para uma escola normal, onde as crianças são crianças e não problemas.
Eu me lembro que minha mochila era cheia de botons das diretas já, reforma agrária já e de bandeiras da China e da URSS.
Foi nessa época que me apaixonei pela bandeira do Japão.
Eu me lembro que adorava meu "uniforme" rosa choque com mini-saia verde rodada na mesma proporção em que minha mãe o odiava.
Eu me lembro que quando o Zico perdeu o pênalti em 86 eu tinha 9 anos e estava trabalhando no bar da festa junina da associação de moradores, abrindo garrafas de cerveja e refrigerante para os adultos.
Eu me lembro de como amei meu primeiro e último trabalho como garçonete e que faria aquilo pelo resto da vida, se deixassem.
Não deixaram. Virei outra coisa. Mas toda vez que abro uma garrafa de cerveja com aqueles abridores velhos enferrujados, sou feliz.
Um comentário:
que lindo!
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