domingo, 4 de março de 2007

Antropofagia

Sala de aula. Segunda-feira de manhã. Mormaço. Num relance displicente, o movimento dos meus olhos repousa sobre teus pés. Ligeiramente bronzeados, unhas expressivas, alinhadas em traçado firme, pêlos escuros logo abaixo delas. Resquícios do animal que fomos um dia, quando tudo era mais simples. Quando o sexo era o sexo e isso bastava. Vejo teus pés escuros envoltos por uma charmosa sandália de couro marrom e não quero mais nada. Tento subir os olhos, ver teu rosto, tua boca, tua expressão, mas o que me encanta são teus pés, desisto. As veias grossas que carregam o teu pulso, o teu ritmo, a tua forma de trepar que me diverte imaginar. Acho bonito o sangue ser vermelho e não de outra cor. O teu pé, ele está aí, pra quem quiser ver, mas este pé que vejo agora, visão cortante que me delicia, é meu, só meu. Olho mais. Suam as mãos. Salivo. Palpito, tremo, quase sufoco. Até que pulo sobre você e, como um tigre, cravo meus dentes em teu tornozelo. Você reluta, mas eu consigo arrancá-lo. Te deixo sem pé e nem ligo.
- Quer de volta? Vem buscar!

Ovos de Codorna

Pegou o ovo de codorna cozido com as pontas dos dedos e cravou as unhas com cuidado na extremidade mais arredondada. Arrancou um pequeno pedaço, mas a pele ficou grudada. Lenhou, então, o outro lado e desta vez conseguiu tirar a pele e a casca ao mesmo tempo. Mordeu os lábios com satisfação. Fez uma pequena pressão com os dois dedos e provocou pequenas rachaduras. As unhas se encaixaram por entre os fragmentos grudados e sacaram fora quadrados amarelos com pintinhas pretas. Livrou-se dos restos na água parada da pia. “Até que eu não sou tão ruim para isso”. Puxou com vontade uma pele grudada e fez a gema brotar pra fora. Mordeu os lábios com raiva. Repetiu a operação mais cinco vezes e colocou os ovos de codorna sobre a alface da salada com as faces mutiladas voltadas para baixo. Levou a travessa para a mesa com os olhos baixos, a qualquer momento seria descoberta.
- Que bela salada!
Lúcia ruborizou e abriu a latinha de cerveja. Estava quente.
- Você sabe como nós sentimos falta das suas visitas e do molho de salada que só você sabe fazer, né filha?
- Você está namorando alguém, Lúcia?
- Não, mamãe, não estou namorando.
- Você não acha que já passou da idade para só ficar?
- Depende do que você entende como ficar.
- Vocês duas já vão começar?! Trégua, pelo-amor-de-deus, pelo menos no almoço de domingo.
- É só preocupação, nada demais. Quando a gente quer bem aos filhos, a gente se preocupa, é natural. Um dia você vai ser mãe e saberá.
- Vocês não acham que eu passei da idade para ter pais preocupados comigo?
- Não precisa ser ríspida com a tua mãe.
- Passa a salada? Lúcia, você esqueceu de pôr vinagre na água onde ferveu os ovos de codorna...
- Vinagre? Para quê?
- Para não estourarem, olha como ficou, tudo lascado. Imagina se tivéssemos visitas! E não era para você ter usado a panela de esmalte para ferver os ovos. Você não lembra que há uma panelinha só para isso?
- Não.
- Você está muito desatenta, querida. Seu pai também está preocupado contigo, pediu para você apagar o fogo do aipim e você esqueceu.
Lúcia engoliu o almoço, dirigiu-se ao seu antigo quarto, fechou a porta, respirou fundo e acendeu um cigarro. Estranha sensação de voltar àquele quarto, que já não era mais dela e nem era outra coisa. Decidiu entrar na internet.
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