
Eram 5:30 quando ela girou a chave da porta de casa, arrancou os sapatos e se jogou na cama. A festa naquele penhasco da Niemeyer em frente ao mar foi bem melhor do que imaginara: excelentes músicos, vinhos, comidas e amizades. Uma confluência rara de pessoas que pouco se conheciam mas que traziam uma avidez sincera por conversar, trocar, estreitar. O som mágico da trupe de argentinos viajantes ressoou noite adentro pela montanha de pedra e os corpos presentes. Mucho gusto, encantada, gracias, traquílo, portunhol: a língua mais divertida que há.
O argentino muy lindo de olhos agatinhados - exímio tocador de flauta, violão e piano - se aproximou de Lúcia no terraço. Conversaram sobre a ausência da lua, a força dos orixás, o sonido de las águas, la libertad. Até que o som, o mar e o lugar pediram, ou melhor, exigiram algum romance. Não havia como não acontecer: olharam-se no fundo dos olhos e beijaram-se delicadamente. Não estivesse Lúcia com uma pedra no lugar do coração teria sentido algo. Mas nada se pasó com ella. Nem uma emoção de leve, nem um arrepio, nem um calorzito, nenhuma vontade de ficar mais, nem nem nem. Nada de errado com o moço, a graça em pessoa. Mas Lúcia simplesmente não sentiu. Fazer o quê? Pegou sua bolsita, chamou um táxi e foi para casa.
Passou o domingo descansando: dormiu a manhã inteira, foi à cachoeira recém descoberta com amigos recém feitos e jantou com os pais. Voltou para casa, terminou de preparar as aulas do dia seguinte e deitou-se cedo, nove e meia.
Até que... tum-tum... tum-tum-tum...tum-tum-tum-tum... O coração de Lúcia disparou. Seu braço esquerdo, dormente, formigava. O peito doía. Não, não é possível enfartar aos 30 anos. Nunca ouvi falar nisso. Lúcia sentia o coração bombeando às pressas seu sangue espesso e pesado. Tum-tum... tum-tum-tum... tum-tum-tum-tum... Levantou-se, bebeu um copo d'água, tomou uma aspirina. Não sentiu-se melhor. Não é possível, o que está acontecendo? Estou tendo um troço, sim estou. Será que é piti? Será que é psi? Não, não vou chamar ninguém. Vou resistir esta noite e amanhã penso no que fazer. Comeu meia maçã para se acalmar e passou a noite inteira sem pregar os olhos pensando em morte, enterro, testamento e na aberração que é alguém morrer antes de cumprir seu destino.
Levantou sentindo-se melhor e foi dar aulas. O braço esquerdo seguia dormente e fraco e não ajudava em nada na direção. Saiu da escola e seguiu direto para o hospital. Sala de espera da emergência, como diria o outro, uma contradição em termos. Há pessoas em estado muito pior do que eu aqui, é tudo imaginação da minha cabeça, estou louca, surtada, lelé. A enfermeira bate o eletro e pergunta: quantos anos você tem? 30, por que, algo anormal? Os batimentos estão variando bastante pra alguém da tua idade. Mas fica tranquila que você não está enfartando, ahahaha. Médico: toma remédio para emagrecer? Não, doutor, não tá vendo que eu não preciso? Pílula anticoncepcional? Sou contra isso, é absurdo a indústria farmacêutica não desenvolver técnicas não-invasivas de contracepção. Muito bem colocado. Anfetamina? Sou careta, tivesse coragem até usava, mas não, não, só tomo muito café e coca-cola. Alguma outra droga, na festa que você disse que foi? Só vinho e cerveja, doutor, que não deixam de ser drogas né? Cigarro? Não. Minto, sim. Fumo no máximo cinco cigarros por semana. Só cinco? Sim, não quero mais do que isso, mas também não abro mão dos meus cinco. Alguma emoção forte? Ahahahaha, especialista no assunto. Lúcia, você teve uma arritmia cardíaca. Não é uma cardiopatia, fique tranquila. Vou prescrever aspirina de oito em oito horas. Elimine os cinco cigarros, consulte um cardiologista e mantenha-se afastada das emoções fortes.
- Só me diz uma coisa doutor: como?