terça-feira, 28 de abril de 2009

Arritmia


Eram 5:30 quando ela girou a chave da porta de casa, arrancou os sapatos e se jogou na cama. A festa naquele penhasco da Niemeyer em frente ao mar foi bem melhor do que imaginara: excelentes músicos, vinhos, comidas e amizades. Uma confluência rara de pessoas que pouco se conheciam mas que traziam uma avidez sincera por conversar, trocar, estreitar. O som mágico da trupe de argentinos viajantes ressoou noite adentro pela montanha de pedra e os corpos presentes. Mucho gusto, encantada, gracias, traquílo, portunhol: a língua mais divertida que há.

O argentino muy lindo de olhos agatinhados - exímio tocador de flauta, violão e piano - se aproximou de Lúcia no terraço. Conversaram sobre a ausência da lua, a força dos orixás, o sonido de las águas, la libertad. Até que o som, o mar e o lugar pediram, ou melhor, exigiram algum romance. Não havia como não acontecer: olharam-se no fundo dos olhos e beijaram-se delicadamente. Não estivesse Lúcia com uma pedra no lugar do coração teria sentido algo. Mas nada se pasó com ella. Nem uma emoção de leve, nem um arrepio, nem um calorzito, nenhuma vontade de ficar mais, nem nem nem. Nada de errado com o moço, a graça em pessoa. Mas Lúcia simplesmente não sentiu. Fazer o quê? Pegou sua bolsita, chamou um táxi e foi para casa.

Passou o domingo descansando: dormiu a manhã inteira, foi à cachoeira recém descoberta com amigos recém feitos e jantou com os pais. Voltou para casa, terminou de preparar as aulas do dia seguinte e deitou-se cedo, nove e meia.

Até que... tum-tum... tum-tum-tum...tum-tum-tum-tum... O coração de Lúcia disparou. Seu braço esquerdo, dormente, formigava. O peito doía. Não, não é possível enfartar aos 30 anos. Nunca ouvi falar nisso. Lúcia sentia o coração bombeando às pressas seu sangue espesso e pesado. Tum-tum... tum-tum-tum... tum-tum-tum-tum... Levantou-se, bebeu um copo d'água, tomou uma aspirina. Não sentiu-se melhor. Não é possível, o que está acontecendo? Estou tendo um troço, sim estou. Será que é piti? Será que é psi? Não, não vou chamar ninguém. Vou resistir esta noite e amanhã penso no que fazer. Comeu meia maçã para se acalmar e passou a noite inteira sem pregar os olhos pensando em morte, enterro, testamento e na aberração que é alguém morrer antes de cumprir seu destino.

Levantou sentindo-se melhor e foi dar aulas. O braço esquerdo seguia dormente e fraco e não ajudava em nada na direção. Saiu da escola e seguiu direto para o hospital. Sala de espera da emergência, como diria o outro, uma contradição em termos. Há pessoas em estado muito pior do que eu aqui, é tudo imaginação da minha cabeça, estou louca, surtada, lelé. A enfermeira bate o eletro e pergunta: quantos anos você tem? 30, por que, algo anormal? Os batimentos estão variando bastante pra alguém da tua idade. Mas fica tranquila que você não está enfartando, ahahaha. Médico: toma remédio para emagrecer? Não, doutor, não tá vendo que eu não preciso? Pílula anticoncepcional? Sou contra isso, é absurdo a indústria farmacêutica não desenvolver técnicas não-invasivas de contracepção. Muito bem colocado. Anfetamina? Sou careta, tivesse coragem até usava, mas não, não, só tomo muito café e coca-cola. Alguma outra droga, na festa que você disse que foi? Só vinho e cerveja, doutor, que não deixam de ser drogas né? Cigarro? Não. Minto, sim. Fumo no máximo cinco cigarros por semana. Só cinco? Sim, não quero mais do que isso, mas também não abro mão dos meus cinco. Alguma emoção forte? Ahahahaha, especialista no assunto. Lúcia, você teve uma arritmia cardíaca. Não é uma cardiopatia, fique tranquila. Vou prescrever aspirina de oito em oito horas. Elimine os cinco cigarros, consulte um cardiologista e mantenha-se afastada das emoções fortes.

- Só me diz uma coisa doutor: como?

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Dia de São Jorge ou o que se faz com um querer sem tamanho?



Lúcia acordou cedo, pegou o metrô e foi para a igreja de São Jorge, no centro da cidade. A fila estava enorme e ela entrou logo após uma negra de megahair, blusa branca rendada e calça de malha vermelha que valorizava um clichê nada óbvio: uma bunda redonda e perfeita que dava gosto de olhar. Que a minha inveja não a atinja. Logo atrás, uma senhora pernambucana de olhos claros penetrantes e muitos colares e pulseiras coloridas pelo corpo. Seria cigana? Lúcia ficou em silêncio, sozinha na fila que só fazia crescer, observando os rostos daquela gente tão diferente e tão parecida em sua fé. Hoje Lúcia é de Jorge. A ele dedicará seu dia. A força dele está nela e é preciso agradecer. Sim, é preciso agradecer ao invisível, ao desconhecido, ao impalpável. É preciso ser forte para sustentar o próprio querer. Poder que pertence a ela e não a homem algum. Ah, a velha tendência feminina de atribuir a um homem o poder que só a nós pertence. Jorge sou eu. Ele está comigo, ele está em mim. E assim foi seguindo a multidão com seu chapéu de abas largas e óculos escuros, devota burguesa igual a qualquer um nas duas horas e meia de fila e fé. Uma rosa branca e uma rosa vermelha para o santo, um papel com um pedido depositado na urna da cura e libertação, dez velas, uma para cada mês porvir e uma para o pai, a mãe e o irmão. Missão cumprida. Lúcia deixa a igreja e vai sambar, porque ela só pode crer num deus que saiba sambar. Esbarra num velho amigo, sua mãe e irmãs de santo, senhoras poderosas com quem se alia. Caminham juntos rumo à rua Gomes Freire para dançar e beber, outras formas de confirmar a devoção ao santo, celebrado com missa e sobriedade, mas também com festa e desmedida. Jorge comporta extremos. Ogum, começo e fim dos trabalhos, força da lança que abre caminhos. Oxóssi, guerreiro das matas, flecha certeira que atravessa o coração das coisas. Vibração que pega pelo pulso quem está no fluxo e desfaz o medo e o mal do mundo. Um encontro que produz outros: amizades novas e antigas se cruzam com a música boa, a bebida que não acaba e a comida do santo distribuída para todos. A noite está caindo e o samba é cada vez mais animado e intenso. O batuque parece evocá-lo e Jorge é seduzido pela alegria da festa. Ele está presente, mas quer mais. O desejo de dançar como um homem é imenso, o batuque se acelera, o apelo dos tambores o enlouquece. A festa dos humanos lhe é irresistível. Num átimo, Jorge invade bruscamente o corpo de uma mulher, que se desequilibra com a força do santo. É ela, Lúcia, a mulher que traz Jorge dentro de si. É ela quem ele possui. Através de seu corpo Jorge é alegre por ser santo e humano e poder finalmente sambar. O que se faz com um querer sem tamanho?

terça-feira, 21 de abril de 2009

Vontade de dar um beijo de língua no mundo.

A maçã no escuro





Instruções para ler as citações abaixo, do livro A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector. Pode-se lê-las na ordem em que estão a seguir (de trás pra frente), mas o efeito é mais interessante lendo-as na ordem em que aparecem no livro. Para isso:
1. Comece a ler na postagem "Sobre tornar-se o que se é"
2. E vá lendo de trás pra frente.
3. Embora você esteja lendo o blog de trás pra frente, na verdade estará avançando na sucessão das páginas
4. Compre o livro
5. Mudou a minha vida

sábado, 18 de abril de 2009

"Não era muito. Mas afinal de contas é tudo, não é? Diga que é. Diga. Faça esse gesto, aquele que custa mais, o mais difícil, e diga: sim." (p.328)
"Os dois evitaram se olhar, emocionados com eles próprios, como se enfim fizessem parte daquela coisa maior que às vezes chega a conseguir se exprimir na tragédia. Como se houvesse atos que realizam tudo o que não se pode, e o ato transpõe o poder; e quando este se cumpre, realiza-se alguma coisa que o pensamento não faria, nós que somos de uma perfeição atroz - e a dor é não estarmos à altura de nossa perfeição; e quanto à nossa beleza, nós mal a suportamos. (...)Como se tivessem acabado de realizar de novo o milagre do perdão, constrangidos com aquela cena miserável, evitaram se olhar, aborrecidos, há muita coisa inestética a perdoar. Mas, mesmo coberta de ridículos e trapos, a mímica da ressureição se tinha feito. Essas coisas que parecem não acontecer, mas acontecem." (p.327)
"E um dos indiretos modos de entender é achar bonito. Do lugar onde estou de pé, a vida é muito bonita." (p.327)
"E muitas vezes nossa liberdade é tão intensa que desviamos o rosto". (p.323)
"Sozinha, com a miséria de sua luxúria. Que não era sequer luxúria de amor. Era mais grave. Era a luxúria de estar viva. (...) Sozinha com o quente sentimento de viver" (p.233-234)
"O que aconteceu, então, foi que Martim teve medo de sua própria cólera como se tem medo da própria força. A escuridão o rodeava. E o silêncio que o envolveu respondeu-lhe que não era assim que ele caberia no mundo e que não era assim que ele se livraria de si mesmo. E ele - ele queria caber. Mas como? Seria no entanto tão simples. Se os bichos eram a própria natureza, nós éramos os seres a quem as coisas se davam: seria tão simples apenas recebê-las. Bastava receber, só isso! Tão simples." (p.224)
"Talvez. Mas pelo menos por um instante de trégua não teve mais medo. Só que sentiu aquela solidão inesperada. A solidão de uma pessoa que em vez de ser criada cria. Ali em pé no escuro, sucumbido. A solidão do homem completo. A solidão da grande possibilidade de escolha. A solidão de ter que fabricar com os seus próprios instrumentos." (p.223)
"Não acreditando no que não poderia explicar, franziu as sobrancelhas como se isso ajudasse a enfiar a linha na agulha. Que esperava com a mão pronta? pois tinha uma experiência, tinha um lápis e um papel, tinha a intenção e o desejo - ninguém nunca teve mais que isso. E no entanto era o ato mais desamparado que ele jamais fizera".
(...)
"Sem uma palavra a escrever, Martim no entanto não resistiu à tentação de imaginar o que lhe aconteceria se o seu poder fosse mais forte que a sua prudência. "E se de repente eu pudesse?" indagou-se ele." (p.172)
"E aquele homem de óculos de repente se sentiu singelamente acanhado diante do papel branco como se sua tarefa não fosse apenas a de anotar o que já existia mas a de criar algo a existir."

"O vento batia à porta. E em torno dele soprava o vazio em que um homem se encontra quando vai criar. Desolado, ele provocava a grande solidão." (p.171)
"Ele não sabia que para escrever era preciso começar por se abster da força e apresentar-se à tarefa como quem nada quer". (p.170)
"Ele não podia se perder de vista". (p.169)
"Martim tinha acabado de 'descortinar'.
Acabara de descobrir a pólvora? Não importa, cada homem é a sua própria chance." (p.167)
"Quando um homem e uma mulher estão perto e a mulher sente que ela é uma mulher e o homem sente que ele é um homem - isso é amor?
(...)
E como se tudo entrasse na mesma serena e violenta harmonia, a vida se tornou tão bela que eles se olharam nos olhos com a tensão de uma pergunta, incompreensíveis olhos de homem e de mulher". (p.162)
"Pois pensar era sempre a tal aventura sem garantia..." (p.157)
(...)não era pessoa que se perdoasse facilmente.
Sim, tudo isso viria. Mas tinha que arriscar tudo. Pois o tempo era curto, aquela moça teimosa tinha que saber se o amor salvava, como se depois tivesse que contar a alguém. Martim - como Vitória dissera num momento de raiva - parecia não ter nada a perder. Mas - adivinhou Ermelinda de súbito aprendendo de si mesma - não existia essa coisa de não ter nada a perder. O que existia era alguém que arrisca tudo; pois embaixo do nada e do nada e do nada, estamos nós que, por algum motivo, não podemos perder. Isso ela soube ali mesmo, de pé. De que modo aquele homem viera trazer a ela própria o problema de jogar alto e de arriscar o que somos - isso Ermelinda estava fadada a jamais saber. Talvez a mera visão dele, pois olhos vêem muito mais do que nós. O que Ermelinda apenas sabia é que tinha, como última jogada, que se arriscar." (p.154)
"Havia silêncio e intensidade sob o sol da fazenda." (p.149)
"Até hoje tudo o que vira fora para não ver, tudo o que fizera fora para não fazer, tudo o que sentira fora para não sentir. Hoje, que se rebentassem seus olhos, mas eles veriam." (p.141)
"Os passarinhos saíram da folhagem e cada um se arriscou um pouco mais. Aos poucos o ar se adensou, os sentimentos começaram enfim a mostrar sua natureza pouco divina, um desejo profundamente confuso de ser amado misturou-se ao cheiro humano da noite, e um vago suor começou a porejar, espalhando seu cheiro bom e ruim de terra e de vacas e de rato e de axilas e de escuridão - esse furtivo modo como aos poucos tomamos conta da terra: tínhamos enfim criado um mundo e tínhamos lhe dado a nossa vontade.
(...)
Cada vez, pois, que o dia se tornava noite, renovava-se o domínio do homem, e um passo era dado para a frente, às cegas, finalmente às cegas como é o avanço de uma pessoa no querer". (p.128)
"Também ele, montado no cavalo, com o ar apreensivo de quem pode errar, estava atentamente procurando copiar para a realidade o ser que ele era, e nesse parto estava se fazendo a sua vida. E a coisa se fez de um modo tão impossível - que na impossibilidade estava a dura garra da beleza. São momentos que não se narram, acontecem entre trens que passam ou no ar que desperta nosso rosto e nos dá o nosso final tamanho, e então por um instante somos a quarta dimensão do que existe, são momentos que não contam. Mas quem sabe se é essa ânsia de peixe de boca aberta que o afogado tem antes de morrer, e então se diz que antes de mergulhar para sempre um homem vê passar a seus olhos a vida inteira; se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira." (p.116).
"Neste momento estava particularmente bom existir pois havia também o ar muito límpido da tarde. E nesse momento a mulher montada de repente riu de enervamento porque o cavalo recuara e a assustara. Com certa surpresa o homem ouviu o riso naquela mulher que jamais ria. É que tudo estava provavelmente se manifestando para Martim, assim como as flores se abrem em determinado momento e nunca estamos perto para ver. Mas ele estava. Pela primeira vez estava presente no momento em que acontece o que acontece. E ele! ele era esse homem que pela primeira vez se dava conta, não apenas por ouvir dizer, mas inquietantemente de primeira mão. Ele era exatamente esse homem. Estranhou-se então com o modo arrebatado de se reconhecer. Acabara de decidir ser, não um outro, mas esse homem".(p.116)
"Era o desejo, sim, ele bem se lembrou. Lembrou-se de que mulher é mais que o amigo de um homem, mulher era o próprio corpo do homem." (p.108)

Então os dias começaram a passar.

"Mas se sua língua uma vez engordara demais na boca para exprimir e se na sua cabeça não circulava ar para que o pensamento pudesse ser mais que ânsia - agora atrás de toda claridade havia escuridão. E era dela que vinha a escura flama de sua vida. Se um homem tocasse uma vez a escuridão, oferecendo-lhe em troca a própria escuridão - e ele a tocara - então os atos perderiam o erro, e ele poderia talvez um dia voltar para a cidade e se sentar num restaurante com grande harmonia. Ou escovar os dentes sem se comprometer. Um homem tinha uma vez que desistir. E só então poderia viver, como ele agora vivia, na latência das coisas." (p. 107-108)

"E ele ficou sozinho, à porta do depósito.

"Martim estava muito surpreendido porque antigamente ele costumava saber de tudo. E agora - como fato no entanto muito mais concreto - ele não sabia de nada. Ele que havia crescido um homem claro, e ao redor dele tudo costumava ser visível. Fora pessoa que soubera respostas, antigamente ele era sem dor. A claridade de que vivera fizera com que ele tivesse sido capaz de executar trabalho com números com uma paciência que não se alterava; e, nu por dentro, as roupas lhe assentavam bem. Esperto e elegante. Mas agora, tirada das coisas a camada de palavras, agora que perdera a linguagem, estava enfim em pé na calma profundidade do mistério. Na porta do depósito, pois, revitalizado pela grande ignorância, permaneceu de pé no escuro. Já era quase noite. É que ele acabara de aprender isso com aquela mulher: a ficar de pé tendo um corpo."(p.107)
"O homem encontrou nela um passado que, se não era seu, lhe servia. O que ela suscitava num homem era ele próprio." (p.106)
"Lá estava ele. Envolvido pelo poder que ele tinha sobre ela e que ela mesma lhe conferira." (p.103).
"No entanto algo lhe dizia que ninguém podia morrer sem antes resolver a própria morte".
"Era tarde demais: a dor ficara na carne como quando a abelha já está longe. A dor, tão reconhecível, ficara. Mas para suportá-la fomos feitos.
Um pouco espantada, o calor da tarde então envolveu-a, inquieto, pesado. Nada se transformara no campo que continuou cheio de imóvel sol. No entanto por um instate a moça não o reconheceu e não se reconheceu, e se se olhasse ao espelho veria grandes olhos olhando-a mas não se veria. Com a acuidade da estranheza, notou na própria mão uma veia que havia anos não notava, e viu que tinha dedos magros e curtos, e viu uma saia cobrindo os joelhos. E sob tudo o que ela era, sentiu alguma coisa: sua própria atenção. Um pouco aflita, olhou em torno. Por uma obscura necessidade de preservação, estava procurando recuperar no campo aquele minuto em que ela ousadamente aceitara amar o homem: procurava recuperar o minuto para destruí-lo. Mas, estonteada, talvez soubesse que também a necessidade de destruir amor era o próprio amor, porque amor é também luta contra o amor, e se ela o soube é porque uma pessoa sabe. Procurou, desesperada e ofendida, aquele minuto que já agora nunca mais ela saberia se fora fatal a ponto de submetê-la - ou se nesse minuto ela própria fora tão extremamente livre que, numa gratuidade que já era pecado e que depois se pagava, ela o apontara.
Procurou recuperar o instante para destruí-lo, mas isso foi penoso e inútil. Pois tudo acontecera rápido demais. E a moça ficou apenas com o seguinte: com um balde cheio de caroços de milho, sem ter sequer contra o que lutar.
E tão abandonada, e tão solitária, como se tudo o que no futuro se fosse seguir nada tivesse a ver com o solitário minuto de glória que há muito já se perdera para sempre entre as marteladas. Essas marteladas que a moça, agora emergida e espantada, ouviu mais fortes e mais próximas, fatais, fatais, fatais. Sua estranha liberdade: ela escolhera ir de encontro ao fatal. Era a gravidade pela qual esperara a vida toda. De novo um senso de tragédia a envolveu. E, estranhamente, dentro desta ela era apenas anônima." (p.88)
"E somente então percebeu que agora era tarde demais, que só poderia amá-lo". (p. 87)
"Era alguma coisa que seria amor ou não seria". (p. 87)
"Quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele estava." (p. 83)
"Esse modo de não entender era o primeiro mistério de que ele fazia parte inextrincável".(p.82)
"O que tem que ser, tem muita força". (p.78)
"Não havia como não aceitar o que acontecia pois para tudo o que pode acontecer um homem nascera." (p.58)
"E se, no seu entorpecimento, grosseiramente reconheceu aquele instante na montanha, foi apenas porque uma pessoa reconhece o que deseja." (p. 53)

A veemente felicidade do céu aumentava em peso o coração estranho

Havia uma gravidade em estar ali que ele próprio não compreendia. Mas a cujo sentido desconhecido ele correspondeu com o rosto que um homem tem quando o vento e o silêncio lhe batem no rosto. De algum modo, pois, não era mentira! Porque, vacilante de cansaço, ele estava ali de pé como se um homem tivesse uma professia dentro de si. De pé, com as pernas enraizadas de cansaço, com uma trêmula avidez dentro de si como um homem que vai aprender a ler. E à beira de sua mudez, estava o mundo. Essa coisa iminente e inalcançável. Seu coração faminto dominou desajeitado o vazio." (idem p.52)
"O bom de um ato é que ele nos ultrapassa".(idem, p. 36)

Sobre tornar-se o que se é

"Aquela coisa que ele estava sentindo devia ser, em última análise, apenas ele mesmo. O que teve o gosto que a língua tem na própria boca. E tal falta de nome como falta nome ao gosto que a língua tem na boca. Não era, pois, nada mais que isso.
Mas, a essa coisa, uma pessoa ficava um pouco atenta; e ficar atenta a isso era ser. Assim, pois, no seu primeiro domingo, ele era.
O que, no entanto, começou a ficar um pouco intenso." (Lispector, A maçã no escuro, p. 32)

terça-feira, 14 de abril de 2009

But I can't help the feeling
I could blow through the ceiling

sábado, 11 de abril de 2009

Sexta-feira da paixão


Toda sexta-feira da paixão é a mesma coisa. As paixões adormecidas insistem em se reacender dentro de Lúcia. E não há nada que ela possa fazer contra isso. Um dia ela leu que há pessoas que morrem de auto-combustão. Estão velhas, sentadinhas calmamente em sua poltrona preferida, o pensamento vagando. Vem a lembrança de uma paixão passada, um fragmento, uma faísca. É o suficiente. O incêndio vai se alastrando aos poucos pelo corpo. De dentro pra fora, em ondas cada vez mais intensas de calor. A pessoa morre a mil graus centígrados de puro nirvana. No dia seguinte, os vizinhos sentem um cheiro de queimado, chamam os bombeiros e descobrem as cinzas em frente à TV. Causa mortis: paixão auto-incendiária.

Lúcia finalmente está conseguindo escrever o primeiro capítulo da saga. Enquanto a escrita brota dos seus dedos, ela chora em silêncio. Está contando da vida de Jaco na fazenda de gado, a tristeza daquele lugar longe de tudo, as campinas sem fim, a amizade com as árvores, a conversa com a mãe ao pé do fogão a lenha, no escuro da casa de pau a pique, o aroma doce da madeira queimando. Lúcia chora de saudades da mãe preta de olhos puxados que nunca teve. Dona Benedita. E a água que corre dos seus olhos tem o gosto do mangue do rio Itanhém.

Lúcia não consegue mais escrever. É preciso sair, ver os amigos, dançar. A gafieira está repleta de gente, mas num determinado momento ela lembra da solidão de Jaco e de Dona Benedita naquela fazenda. E sente-se só, terrivelmente só naquele ambiente povoado de gente que nunca pisou num mangue. Que nunca viu um quero-quero.

Pegou um táxi e foi para casa. No dia seguinte, quando despertou, entendeu. A verdade transparente a assaltou com a força e a simplicidade de uma constatação. Ainda quero quero você. Não é mais possível negar, se enganar, dizer que faz tempo que passou, que está superado. Três anos e meio. Tenho que parar de inventar para mim mesma uma sanidade que não tenho. Era uma constatação simples e clara: aquele querer ainda a habita. Já esqueceu da existência dele, já amou outros, já foi feliz e triste depois. Mas aquele querer, aquele, nunca a havia deixado.

Lembrou que era dia de Cosme e Damião. Lembrou que brincara a manhã inteira com as crianças e descobrira um ninho de quero-quero. Lembrou das botas de borracha que ela usava para andar pelos espraiados do rio e que ele achou cômicas. Lembrou de tudo o que não foi dito. Lembrou do beijo inesperado mais esperado da história, da camisa vermelha suada com o calor daquela hora da manhã. Da volúpia atrás da árvore num recanto improvável do sítio. A pulsação daquele braço forte que a apertava com força. O encantamento dos olhos em brasa. E, sobretudo, o grito do quero-quero. O grito do quero-quero em pleno vôo afirmando com força sua liberdade incondicional.

Eu te quero quero sim. Eu te quero quero muito. Que mal há nisso?

Eis a descoberta de Lúcia. Não teve curandeiro, nem exorcismo que conseguisse tirar ele de dentro dela. Porque o fato é que estás presente, quer eu queira, quer não. E a sensação de vitalidade que acompanha nosso encontro estranhamente permanece.

Quando abriu os olhos, Lúcia viu que ele se transformara num quero-quero. E envolta em suas asas, ela começou a voar.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Oi Aninha,
Foi muito divertido, "dancemos" muito! O som estava ótimo, tinha vários amigos, mas teve uma hora em que me senti só, terrivelmente só naquela pista de dança povoada de gente. Nada demais. Peguei um taxi e vim pra casa. Cineminha hoje?
Beijos